terça-feira, 19 de agosto de 2008





No filme “Nós que aqui estamos por vós esperamos” o diretor Marcelo Masagão propõe-se a construir um retrato não convencional do séc. XX. Ao colocar em segundo plano a visão de uma historiografia tradicional, na qual os sujeitos que constroem a História são as classes ou as instituições, Masagão deu preferência à micro-história. A análise desenvolve-se a partir da exploração das fontes, envolvendo-se com descrição etnográfica e preocupando-se com uma narrativa literária, contemplando temáticas ligadas ao cotidiano de personagens, geralmente figuras anônimas que passariam despercebidas na multidão.
A estrutura deste documentário é semelhante a um “mosaico de imagens”, onde fotografias e vídeos são justapostos em seqüências fragmentadas. Não por acaso. O Séc. XX se configurou intrincado, contraditório e difícil de se compreender, onde as pressões estruturais se chocavam com as decisões individuais, onde a modernidade e o anseio por velocidade contrastavam com a miséria e o atraso de países subdesenvolvidos e explorados.

Entre as peças escolhidas para compor este “mosaico”, algumas merecem atenção especial.
A guerra e os homens comuns

O filme consegue inserir com maestria o contexto individual de alguns personagens no contexto das duas grandes guerras, criando paralelos entre seus cotidianos e os acontecimentos mundiais mostrando, por exemplo, como gerações de uma mesma família participaram dos vários conflitos bélicos do Séc. XX. Trata dos transtornos psicológicos pós-guerra, da solidão que os fatos acabavam por submeter às pessoas, das vidas que se reorganizavam em torno da guerra (mas não eram totalmente decididas por ela), das ideologias que surgiam e de outras que se extinguiram em um curto espaço de tempo.
Entretanto, é na forma sutil de mostrar como vida e morte tornaram-se banais nesse período que o documentário consegue nos chocar. É justamente a morte que interliga todas as peças do “mosaico” e nos faz lembrar que nós, assim como aqueles personagens de um século que já acabou, um dia teremos o mesmo fim. A morte é usada como elemento chave para a conexão de todas as histórias. É ela que iguala os ricos e miseráveis, orientais e ocidentais, mulheres e homens, ditadores e anarquistas.
O equilíbrio das abordagens

Marcelo Masagão foi muito sóbrio na escolha dos temas e personagens de seu documentário. O retrato histórico por ele construído não foi exclusivamente econômico, masculino, europeu, burguês ou proletário. Emancipação feminina, a invenção e consolidação do cinema, o Oriente e seus pequenos personagens encantadores, as artes plásticas, a dança, a psicanálise... Todos essas peças foram usadas pelo diretor para driblar o paradigma do determinismo econômico, mostrando uma nova ótica que contraria àquela de Karl Marx: “A história da sociedade até aos nossos dias é a história da luta de classes.” Para Masagão a história da sociedade não é só a da luta de classes: é também a história dos conflitos internos, dos afetos, da solidão.
“Nós que aqui estamos por vós esperamos” não se trata apenas de um filme que reconstrói de uma forma pós-moderna o breve Séc. XX. Os 73 minutos falam, sobretudo, de uma humanidade possível em qualquer tempo e espaço. De homens e mulheres que trabalharam, lutaram, amaram, odiaram, sofreram, contaram histórias, riram e agora estão lá, na sombra discreta do cemitério, esperam de nós.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Apócrifos, Das cartas não enviadas: 19

F.A. ,

Pois é, mais um ano. Algo estranho aconteceu: foi a primeira vez que não me sentia bem por ser meu aniversário. Por algum motivo sinto que esse pode ser o primeiro de muitos assim, mas desejo que eu só volte a sentir algo como hoje aos 30, e nunca mais. Sempre fui, de certa forma, alguém que celebra secretamente a vida. Não existia mazela que me derrubasse a única certeza, a concreta, unipotente. Mas ontem eu descobri: não existe nada mais frágil que uma certeza. Dúvidas, sim, podem ser unipotentes. Contudo, essa constatação que te confesso, no meio da madrugada e ouvindo os tiros na tv ligada que nem assisto mas me espanta o medo do subjetivo, não abalou por completo o sentimento (que chamava equivocadamente de certeza) de "maravilhamento" com o existir: "Que Deus perfeito é esse que me permite duvidar de todas as coisas?!" E derrepente me encho novamente 'da matéria de que sou feita'. Nessa madrugada insone conheci o conceito de "Eterno Retorno". O Nietzsche é um filho das trevas abençoado pelo divino. Que maldadade e gentileza a dele me colocar num dilema desses logo no primeiro dia dessa nova volta ao redor do sol:

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: 'Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!'. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um Deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"

Eu ainda não sei, ao certo, se sou tão plena a ponto de conseguir repetir o tal "maravilhamento"por toda a eternidade, mas a resposta parece me vir pela boca do mesmo carrasco:

"Não querer nada de diferente do que é, nem no futuro, nem no passado, nem por toda a eternidade. Não só suportar o que é necessário, mas amá-lo".

"Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas."


Ainda não sei nada sobre isso. Contudo, outras coisas já descobri. Por exemplo: descobri que a minha primeira tarefa neste novo ano é uma que tive há algumas voltas atrás: Preciso aprender a falar. Preciso pôr fim à minha vida infantil. E no inicio vou gaguejar e trocar as palavras. Vou me apropriar das imagens, fazer mímica, desenhar. Sinto que de alguma forma já passei por isso antes e talvez o Nietzche não esteja equivocado: Estou eternamente retornando, dando voltas ao redor de um Sol. Mas nunca será da mesma forma. Bom ou Ruim, só será diferente.