quarta-feira, 20 de maio de 2009

Apócrifo, das cartas não enviadas: A aprendizagem solitária do não-pedir

Fever 103
S.,


Se decidi te escrever, acredite, é por pensar que isso você entenderia melhor do que ninguém:

Ontem meu corpo dormiu mas minha alma ficou de vigília. Um fluxo incontrolável invadiu os meus sonhos e todos eles me diziam a mesma coisa. Acordei, e desde então a mesma ideia ocupa a minha cabeça e será assim o resto do dia, até que eu volte a dormir e recupere a paz que esqueci no reino de Morpheus.
Que coisa é essa me inquieta? Que coisa é essa que é súplica do corpo e da alma?Que coisa é essa tão inexorável que devora meus adjetivos, meus advérbios, e me faz falar pela boca dos outros, S.? O que é isso?

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita.


Serei só eu? Será capaz de caber tanta coisa num corpo-alma só? É só o meu sono que é
perturbado com tanta vontade, com tanto desejo de não sei ao certo que? É só em mim que corre esse rio de desvario?Essa febre?

Darling, all night
I have been flickering, off, on, off, on.
The sheets grow heavy as a lecher's kiss.

Por vezes tenho vontade que um raio me parta em duas,como sou em verdade, por dentro. E que uma se vá, com sua febre insana, com seu desejo caótico, com sua vontade tumultuada, como a superficie da água quando ferida por uma pedra. E que a outra permaneça, serena, com o coração batendo calmo, com o corpo descansado après les petite mort.

I am too pure for you or anyone.
Your body
Hurts me as the world hurts
God. I am a lantern --- My head a moon
Of Japanese paper, my gold beaten skin
Infinitely delicate and infinitely expensive.


Me diz, então, você, qual o remédio para baixar minha febre? Qual o caminho para encontrar minha paz, esgotar esse pulsar incessante que é estar vivo? Oh, my lord, i've been waiting, like Danae, for your answer.For your gold rain of eternity.

Does not my heat astound you. And my light.
All by myself I am a huge camellia
Glowing and coming and going, flush on flush.

I think I am going up,
I think I may rise ---
The beads of hot metal fly, and I, love, I

Am a pure acetylene
Virgin
Attended by roses,

By kisses, by cherubim,
By whatever these pink things mean.
Not you, nor him.


Silêncio. Silencio.

Image: Danae, by Klimt
Pagan poetry: O que será (à flor da pele), By Chico Buarque. Fever 103º, by Sylvia Plath.

Fever 103

terça-feira, 12 de maio de 2009

Um post grande sobre coisas pequenininhas

Eu acho que certas coisas são mais simples de falar, pra mim. E, por acaso,são as coisas mais complicadas de entender e domar. Inclusive, que mania péssima essa de querer "domar" as coisas. Querer delimitar, amarrar, segurar o que, na verdade, é inevitável que se escorra entre os dedos. Hoje eu vi uma amiga dizendo que se ela fosse uma fazenda não teria cercas. Feliz dela, que pode ver o desejo cavalgando livre por aí. Querer alguma coisa é estar vivo. Querer muito uma coisa é ainda estar vivo.

Mas voltando as coisas que parecem ser mais fáceis de falar. Por exemplo: para mim é fácil e claro falar de "amor". Parece que é um assunto que não se esgota em mim. Acho que escreveria facilmente aqueles livrinhos "Sabrina" e "Julia". O problema, provavelmente, é que eles seriam todos iguais. Acho que muito cinema pode fazer mal a cabeça das pessoas. Não falo nem de "príncipes encantados" e "cavalos brancos". Vai que eles existem? Quem sou eu para dizer o contrário? Só que eu sempre achei que os finais felizes esquecem que existiu um "meio", e que esse pode ter sido muito dolorido. O final feliz não vai apagar o que as pessoas viveram antes dele, as feridas que carregam. Esse é o grande perigo da ideia do final feliz: ele não vai resolver toda sua vida. Ele não vai apagar seus medos e suas dores. Ele não vai saciar todas as suas vontades. Ao mesmo tempo, pode ser uma vantagem ótima: é só pensar que tudo o que foi vivido pode ser usado como experiência a seu favor.

Assim, quando digo que é relativamente fácil falar de "amor", creio que seja por ter aprendido a sonhar e desejar coisas muito concretas e até relativamente simples. Acho que nunca fui de excluir do "pacote" os defeitos do outro. Nunca esperei alguém pleno e cheio de respostas. Para falar a verdade, essa ideia até me desagrada. Nunca esperei alguém sem passado (por mais que esse possa me deixar morrendo de medo, às vezes) ou sem possibilidades futuras de querer partir para outras coisas (o que pode me assustar mil vezes mais). Acho que o tempo foi me ensinando que não podemos sonhar pelos outros, não podemos incluí-los nos nossos sonhos sem perguntar antes se eles querem estar ali. É assustador? Sim. Morro de medo? Sim. Se entregar nem sempre é uma coisa fácil. Mas é preciso enfrentar o fato de que viver as coisas, uma de cada vez, e deixá-las ir é inevitável. O destino das pessoas não é estático. Não é porque ele cruzou com o seu que ele vai ficar ali para todo sempre, amem. É que nem jogo de pinball (ok, a comparação não foi das melhores).

Certa vez um rapaz (que muito quero bem, ele nem tem ideia de quanto) me disse que não conseguia viver o agora sem pensar no "por vir". Em outro momento ele disse que não fazia planos "afetivos", já que não podia prever para onde rumaria a vida das outras pessoas. Eu não sei exatamente como ele resolveu esse problema. Mas eu, eu faço planos afetivos. Pra mim e alguém que eu não sei quem é, ainda. Eu imagino lugares, viagens, livros para dividir. Eu vivo lutando contra essa vontade de sonhar com essas coisas. No fundo, por mais que eu seja pragmática e "pé no chão", eu tenho vontade de casa na árvore e café da manhã para dois. E não acho mais justo me punir por isso. Meu sonho é uma fazenda sem cercas. Se um dia alguém quiser entrar nele, modificá-lo, emprestar suas cores e quiser sugerir o nome da filha que eu secretamente quero ter, porque não? Absurdo seria esperar alguém que se encaixasse direitinho no personagem que eu criei um dia. Acho que isso já passou. Era mais seguro, mas passou.

Hoje eu sonho diferente, e morro de medo de não poder dividir com ninguém o que eu sonhei. Mas estou aprendendo, todo dia, que liberdade pode ser uma prova de amor superior e descobrindo o meu potencial de não desistir de mim nem dos outros. Se apaixonar todo dia por um alguém diferente, mas que é a mesma pessoa e descobrir o quanto sou capaz de lutar para que algo dê certo. É a primeira vez que não desisto. É a primeira vez que tento ver alguém antes de depois de qualquer final feliz, e sorrio.


Pode não ser a resposta para você que está aí me lendo. Mas tem sido pra mim, que vejo um sorriso e um aceno na janela do ônibus, todo dia.


"Porque cada início é só continuação,
e o livro das ocorrências está sempre aberto ao meio."
Wislawa Szymborska








Alexi Murdoch - Song for you

sexta-feira, 8 de maio de 2009

"Apócrifo, das cartas não enviadas: E o Sertão virou mar"


Amor meu,


Sinto muito pela igrejinha e pelo museu. Sinto muito pela sua roseira, pelas roupas que estavam no varal, pelo bolo que não cresceu como você queria. Sinto ainda pelo seu caderno de versos, encharcado. Quem sabe com tudo borrado você não entende o que estava escrito? Por favor, não fique muito tempo molhado. Tenho medo que você adoeça e eu não esteja por perto pra te fazer um chá. Te botar no colo. Assanhar seu cabelo. Fazer o que de fato nunca passou de vontade.


Olha, deixa eu te dizer, você tem sorte de ter alguém que quer cuidar de você. É que encontrar gente que quer outras coisas, boas e ruins, é até fácil. Mas cuidar, cuidar mesmo, não. Carinho demais guardado é perigoso, que nem essa chuva.


Eu tento construir diques para conter a força torrencial do afeto em mim. É difícil, rapaz. É difícil ver tanto amor que tem pra ser dado apodrecendo aqui dentro. Por medo. Por não ver leito por onde possa correr tanta água. Eu não peço muito, entenda. O problema é que geralmente o pouco que eu peço é justamente o que não pode ser dado pelo outro. Eu quero só um bilhete, um doce. Quero só a segurança de não ser um “tanto faz”. E por já ter me doado tanto a quem não merecia, hoje eu seguro meu amor em nuvens pesadas, prontas pra chover. O problema não é chover. O problema é chover tudo num canto só. O problema é chover e não ver evaporar, não ver retornar ao céu tudo que já foi nascente, já foi rio, já desembocou no mar.


Mas não tem céu que agüente, meu bem. Um dia há de chover. E meu amor quando chove faz estrago, arrasta tudo o que vê pela frente. Arranca cerca, derruba muro, faz sangrar açude. Depois se aquieta, contemplando os destroços. Então desculpe se eu alaguei sua cidade, se molhei seus cadarços. Só queria que soubesse: foi inevitável.





imagem: Lara Jade