domingo, 22 de outubro de 2006

Clarice

No mistério o medo. No medo a curiosidade. Na curiosidade, desejo. No desejo? É como aquelas bonequinhas que cabem uma dentro de outra dentro de outra e outra e outra outra...Qual era mesmo o nome? Ah! Clarice...Não das bonequinhas mas da menina que as possuía: Clarice era como gaveta trancada em quarto de avó.
Era em passos pequenos, quase saltinhos de amarelinha sem riscos no chão, que Clarice menina brincava com os moleques de Amaralina. A-ma-ra-li-na. Uma daquelas cidades pequenas com as mesmas coisas que tem em toda cidadezinha: Moleque descalço, mulher de janela, jardim de sonho e ciranda, balão de são João, são José, são qualquer, são.
E a menina morena Clarice, pequena no sei jeito de não ser quase ninguém, fez com os moleques meninos caminhos de fruta e passarinho: Estilingue, calango, soim. Quintal do mundo (o mundo todo). Não por isso menos moça...Não por isso menos mulher: ainda quando os seios nem ousavam o despontar, quando entre menino e menina não havia diferença, Clarice jamais quis se despir entre os meninos e os peixes.
Feito matinho que vira roseira, Clarice menina virou moça de botões fechados: na gola e no punho. E não era de criação a seu recato de novena, igreja, procissão: De cabelos presos e pernas cobertas, rezava ladainhas... Que eram também dos rapazes, que repetiam como oração: "Que mistério tem Clarice?, que mistério tem Clarice? Pra guardar-se assim tão firme no coração?"
E guardou-se, Resguardou-se: A moça brotou mulher. Clarice fez-se penitente e dentro da noite escorrida açoitava, o que não sabia ela, era inocência.
Tem que um dia amanheceu e com ele Clarice, no cais, assistiu o meu barco se afastar de Amaralina. Destemperadamente linda, aos soluços, Clarice despiu-se como se o vestido sobre ela fosse só outra bonequinha que lhe cobria o corpo moreno.
Permaneceu em todo adeus chorando nua, para que eu lhe tivesse toda, todo tempo em que existisse. E choraria até que todo amor sumisse e seu corpo expirasse e seu pranto à extinguisse. A procissão repetia a ladainha: "Que mistério tem Clarice?, que mistério tem Clarice? Pra guardar-se assim tão firme no coração?"
Quando o dia fez-se noite e a noite fez-se anos, o mar fez de Clarice estátua de sal. Mais que história, fez-se lenda: entre os meninos e os peixes, guardados em uma caixinha que fica dentro d'outra caixa, escondida no armário da minha memória de Marinheiro do Tempo.

7 comentários:

Pedro Nakasu disse...

quem seria tal clarice, e que mistério guarda? Eu diria que é uma beeeela história
;)

Anônimo disse...

eu não sou daqui também marinheiro
mas eu venho de longe e ainda
do lado de trás da terra
além da missão cumprida

...

doente da falta de voltar

.

a diferença é que ela, creio eu, não veio dar despedida.

ah, se eu fosse marinheiro...

Filipe Teixeira disse...

isso me lembra Fernando Sabino, aquela coisa angustiante de não se saber exatamente quem se é... e vc também se escorre em tinta, não é só meu o privilégio

Alan Santiago disse...
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Alan Santiago disse...

ah, esqueci de dizer: vai abrilhantar sobremaneira o nosso Canhotos.

Alan Santiago disse...

esse conto é uma porrada na gente que escreve também. percebo um profundo acerto na escolha da linguagem que acompanha essa clarice-sempre-menina e que se fecha em si, porque tem um grande amor. você faz, muito apropriadamente, umas aproximações infantis e provincianas (como "meninos caminhos de fruta e passarinho: Estilingue, calango, soim" ou "entre os meninos e os peixes"). sem dúvida, uma das melhores coisas suas que eu já li.

Anônimo disse...

Matriosca é o nome da boneca que comporta outras bonecas, e é de origem russa.